Sobre a construção de um templo: A ficção da memória em ‘A guerra não tem rosto de mulher’

Em 2015, a escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch foi laureada com o Nobel de Literatura e se tornou a primeira mulher com uma obra de não-ficção a vencer o prêmio. Apesar de ter ganhado fama internacional somente a partir disso, com as suas obras sendo traduzidas pela primeira vez em diversos países, inclusive no Brasil, Aleksiévitch já era um nome reconhecido das letras russas contemporâneas desde a publicação de A guerra não tem rosto de mulher, seu livro de estreia lançado em 1986. Já nesse primeiro livro, é estabelecido o estilo literário inconfundível da escritora, baseado nos testemunhos colhidos – com a realização de entrevistas em profundidade, transcrição e estratégias de organização dos numerosos relatos – e na pontualidade da interferência textual da autora em meio ao emaranhado de vozes que compõe os seus livros.

Esse estilo aparentemente simples esconde o que realmente está em jogo em sua obra: o seu projeto de revisão histórica e, acima de tudo, literária sobre a União Soviética. Os temas de seus livros giram em torno de conflitos e acontecimentos chaves de seu país, como é o caso da Segunda Guerra Mundial e o desastre de Chernobyl. No entanto, esses acontecimentos são compreendidos a partir do ponto de vista dos anônimos e de suas participações discretas. Para a autora, as informações e os fatos verificáveis pesam menos do que as histórias particulares das pessoas comuns que vivenciaram esses momentos de tensão, medo e mudança. A partir disso, surgem os dois objetivos de sua obra: um, é buscar e registrar essas histórias clandestinas; o outro, é criar uma memória coletiva a partir desses relatos dispersos, que se diluíram em meios à uniformidade dos documentos. A revisão literária parte da necessidade de criar esta outra memória, e não apenas de buscá-la. Em A guerra não tem rosto de mulher, Aleksiévitch define seu propósito com a seguinte metáfora:

“Dizem: ah, mas memórias não são nem história, nem literatura. É só a vida, cheia de lixo e sem a limpeza feita pelas mãos do artista. Nosso cotidiano está repleto da matéria-prima da fala. Esses tijolos estão espalhados por todo lado. Mas os tijolos ainda não são o templo!” (ALEKSIÉVITCH, 2016, p.18).

Segundo o filósofo Jacques Rancière, em um ensaio sobre a ficção documental do cineasta Chris Marker, a memória não está relacionada com a escassez ou a abundância de informações, e sim com as maneiras como essas informações são organizadas através da ficção. Para o filósofo, a ficção não está necessariamente ligada à invenção fictícia, mas sim com um certo arranjo entre informações e evidências para que um sentido possa ser criado, uma realidade possa ser pensada, uma memória possa ser lembrada. Nesse ensaio, Rancière analisa o documentário O Túmulo de Alexandre, em que Chris Marker realiza uma biografia sobre a memória do cineasta soviético Alexandre Medvedkine. Mas como conservar as lembranças deste cineasta praticamente desconhecido, cuja maioria das obras se perderam? Através da ficção documental, da combinação dos poucos rastros da vida e obra de Alexandre, é construída uma memória, que aqui está mais relacionada ao sentido de memorial, de monumento – de túmulo – do que das lembranças sobre um indivíduo. Através dos vestígios da vida de um homem qualquer, se constrói uma memória de um lugar e de um período.

Em A guerra não tem rosto de mulher ocorre o contrário; as informações são abundantes, já que as histórias anônimas de quem vivenciou a guerra, direta ou indiretamente, estão espalhados por toda parte no cotidiano. No entanto, em um país onde é tão marcada a divisão entre o oficial e o pessoal, é como se essas vozes das ruas não existissem, já que elas não se encadeiam com os acontecimentos da História predominante. As vozes são apenas dados isolados fechados em si mesmos, sem, portanto, poderem ser pensadas como uma história, apesar de serem ouvidas.

Diferente dos monumentos de “gesso e concreto armado” que registram os bustos dos generais, o templo imaterial da guerra das mulheres não “petrifica” a história na representação dos seus momentos decisivos, nas grandes batalhas e na narrativa da Vitória, contada e recontada a todo instante na URSS. O templo é um monumento em constante construção, pois ele não é só o lugar da lembrança do que aconteceu, e sim o lugar do encontro entre os relatos daquelas mulheres, onde suas subjetividades se entrecruzam e se ressignificam no e pelo encontro. O desafio da escritora foi encontrar uma forma de preservar as lembranças particulares e, a partir do particular, criar a visão do todo. No que Aleksiévitch chama de “coro”, os testemunhos são transcritos na íntegra, com pouca ou nenhuma interferência textual da autora, que interfere mais pelas maneiras de combinar as vozes. Dessa forma, a escritora se torna uma espécie de regente, a criadora de elos inesperados entre fragmentos, fazendo com que a verdade não seja “petrificada” pela palavra, e sim surja das próprias vozes.

Em A guerra não tem rosto de mulher, Svetlana Aleksiévitch escreve a memória da guerra que ninguém notou, mas que persiste nas ruas, nas vilas, dispersas em meio à vida comum e à verdade dos documentos oficiais. Contrapondo-se ao consenso sobre a Guerra, à maneira homogênea pela qual a História é dita e pensada, o templo de Aleksiévitch revela a importância da literatura para a redistribuição dos lugares, e também a sua urgência:

“Construo templos a partir de nossos sentimentos… De nossos desejos, decepções. Sonhos. Daquilo que aconteceu, mas pode sumir”. (ALEKSIÉVITCH, 2016, p.18).

Referências:

ALEKSIÉVITCH, Svetlana. A guerra não tem rosto de mulher. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

RANCIÈRE, Jacques. A ficção documental: Marker e a ficção da memória. Arte & Ensaios. Revista do PPGAV/EBA/UFRJ, N°21, dezembro de 2010.

Por Raphael Domingos

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