Rastros e fragmentos: a ficcionalização da memória e do documental em Para Sama

 Em 2016 Waad Al-Kateab, jornalista e ativista síria, iniciou as filmagens do longa que finalizaria três anos depois, Para Sama. Al-Kateab, pseudônimo adotado pela realizadora, agrupou um material denso, um emaranhado de vozes, externando um cotidiano duro e sedimentando seu projeto: fazer emergir questões locais e torná-las próximas de um maior grupo possível de indivíduos. A ativista pôde sentir o tamanho de sua potência e colher a força do impacto de seus relatos, além de seu eco no mundo, com reportagens avulsas feitas em colaboração com o Channel 4. Os registros realizados, já com vistas a reuni-los em uma composição fílmica, caminharam nessa mesma trilha de recolhimento do ali vivido, dentro de um contexto de guerra civil, para poder moldar e obter um resultado possível de ser mostrado ao mundo.

Esse movimento, depois de ter finalizado o longa, reverberou e amplificou a voz da ativista, que hoje vive no Reino Unido. Al-Kateab conquistou um BAFTA e concorreu ao Oscar de Melhor Filme Documentário, além de ter ganhado o Prix L’Œil d’or do festival de Cannes em 2019. Partindo do cuidado da diretora em revirar a matéria viva retorcida e dali tirar o sumo do seu trabalho, mesclando afetos, dores e a luta rotineira, está o percurso de criação do modo de contar e construir uma memória no documentário Para Sama. Pelo mesmo processo de junção de elementos e justaposição dos fragmentos do filme, a criação de ficção se processa e desnuda um mundo particular.

O registro documental feito por Waad Al Ketab nos conduz pela construção fílmica de uma memória recaptulativa, endereçando à sua filha, Sama, a potência dos relatos colhidos. Assim, o filme nos traz o percurso da mãe, sua juventude e início dos conflitos, o despontar da Primavera árabe e a onda de protestos e clamores que se espraiou pelo Oriente Médio, chegando aos jovens estudantes de Aleppo, a resposta abrupta e sangrenta do governo e toda dor semeada a partir daquele momento. Acompanhamos o espaço pessoal de Waad, seu casamento e a alegria da descoberta da gravidez. O caos é latente, a luta constante e o papel desempenhado por Hamza, seu marido, médico e responsável por manter em funcionamento um hospital, coloca-nos em face com imagens duras e acontecimentos dilacerantes, além de muitas mortes registradas.

Para Sama nos leva pelos escombros de uma cidade sob um cerco que, aos que vivem na situação calamitosa da guerra, parece infindável. Percorrendo diferentes momentos do conflito, as relações do casal com amigos, colegas do hospital e tudo que compõem o movimento das pessoas em foco, temos o que é central na narrativa: a construção de uma carta audiovisual endereçada a uma futura destinatária, também peça fundamental de todo desenvolvimento do filme, Sama. Entre o fluxo de acontecimentos, de sensações e vivências dentro de um contexto particular, Sama vem ao mundo, o esforço de Waad centra-se em recolher, capturar e registrar os componentes caóticos, angustiantes, mas também belos, os laços e relações humanas vivenciadas por sua família em construção, além de seus amigos próximos. Constrói-se um tecido denso e grávido de vida, cores, dor e perda, sem nunca perder de vista a confecção de um relato direcionado para Sama.

O filósofo Jacques Rancière, em um ensaio intitulado “A ficção documental”, percorre os caminhos da memória e do documental para lançar luz sobre algumas questões acerca do filme de Chris Marker sobre o soviético e também cineasta Alexandre Medvedkine.  A organização dos elementos com vista a fins específicos e criação de efeitos a partir do arranjo dos mesmos, produz um resultado rico e conduz, a partir daí, para a construção de uma memória. Acionando o percurso de Rancière é possível aproximar o caminho trilhado pela realizadora síria no momento de costurar a vida capturada e gerar uma carta audiovisual.

 Assim, uma memória que vai se moldando com o correr do filme, aliada a uma articulação não linear, rearranjos e entrelaçamentos para criar uma gramática narrativa particular, são o material fundante da carta audiovisual construída. Dessa forma, o papel da montagem é fundamental, o que gera sentido é a maneira que se estrutura o moldado pela justaposição, direcionado a sedimentar elos na memória prospectiva trabalhada, endereçada a uma destinatária futura cuja existência não está garantida. O elaborado na montagem explora as potencialidades de ressignificação, as imagens captadas por Al-Kateab tomam novas cores por seus rearranjos ordenados, a oscilação demarcada vem pela presença de momentos dicotômicos lado a lado.

 Nesse percurso, a história do filme e a história à qual ele remete se fazem indissociáveis, o resultado sendo não uma produção de realidade, mas sim um encontro com o compreender do que é ali vivenciado. Portanto, é lançando mão do oscilante escancarado pelo contraponto da fixidez e movimentação, sob um tempo que flui por mais entrecortado que seja, juntando ou apartando vozes e corpos, dilatando ou comprimindo tempos, que a memória não é conservada, e sim, criada. Nesse sentido, os espaços tomam centralidade abundante, sendo impossível destacá-los das pessoas, por estarem tomados pelos indivíduos que os preenchem, o que é verificado pela imensa dificuldade de abandonar a cidade no final do percurso tramado no filme.

Portanto, o jogo com a memória que vemos ali trabalhado, pensando na pessoa futura à qual ele é destinado, torna-se questão urgente para a realizadora, o que desagua na percepção final: não é apenas para Sama que os relatos e a carta são endereçados, mas também à própria diretora, Waad. Ela decanta no desenrolar narrativo diversos questionamentos, supostamente voltados à sua filha, mas que visivelmente são deslocados para ela mesma, questionando se fez as escolhas corretas, sofrendo pelo abandono da cidade e mais ainda pela possibilidade de esquecer a realidade que a transborda no momento em que filma. Dessa forma, a busca de construir uma memória traça rotas possíveis, mesmo frente às incertezas que rondam o cotidiano dos retratados, de manter esquivado do esquecimento algo tão constitutivo de Al-Kateab, sua vida em Aleppo.

Por Nina Camurça

REFERÊNCIAS:

Para Sama (2019, Síria/ Reino Unido, 95 minutos, cor) Waad Al-Kateab/Edward Watts.

RANCIÈRE, Jacques. A ficção documental: Marker e a ficção da memória. Arte & Ensaios. Revista do PPGAV/EBA/UFRJ, N°21, dezembro de 2010.

Leave Comment

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.