Cidade da infância

CNão foi um sonho e eu jamais teria inventado isso. Era para Vera Cruz ser lá, tenho certeza, escondida no meio daquelas montanhas, distante das outras cidades, sem nenhuma estrada de acesso direto até ela – apenas desvios. Deveria haver ruas estreitas e inclinadas em morros de pedra. E mais abaixo, tios conversando na janela, fumando seus cigarros. Deveria haver também uma praça com uma igreja no centro, e na frente da igreja, um jogo de amarelinhas em que todas as crianças brincariam, um jogo feito de giz sobre a ardósia, desenhado e redesenhado constantemente, de modo que os números se tornariam ilegíveis com o tempo, e as linhas teriam sido tão sobrepostas umas as outras que causariam polêmicas em todas as brincadeiras. Assim eu esperava encontrar Vera Cruz, a cidade da minha infância, a cidade perdida. Mas lá só havia um descampado.

Não me lembro de nenhum dia que passei em Vera Cruz, de nenhum acontecimento. Sei apenas que é a cidade onde meu pai nasceu e que lá morei por menos de um ano. Pouca coisa restou daquela época, apenas certas sensações furtivas, fragmentos que não se combinam em uma imagem concreta, mas que, de alguma forma, sei que pertencem àquele lugar. Parei no meio do descampado, fechei meus olhos e fui para bem longe dali: lembrei das minhas mãos sempre frias, não importava se estava frio ou calor. Lembrei daquela casa velha e escura, tão escura que parecia o fim de tudo. Senti saudade, pertencimento. Lembrei da cidade toda cinzenta, como se tomada por uma neblina fina, e do céu sempre nublado, sempre! Abri meus olhos devagar, olhei para o céu e era um dia de sol. Me senti sozinho, abandonado, o único a carregar os restos de Vera Cruz como quem carrega o mapa despedaçado da terra prometida, a qual ninguém mais acredita.

Talvez por isso nunca perguntei para minha mãe sobre a cidade. Eu tinha medo de que ela viesse com suas histórias terríveis, às quais ela parecia contar com prazer nos encontros familiares, arruinando festas, desmanchando sorrisos e espantando visitas indesejadas. Ou pior: ela poderia não ter nenhuma história para contar, talvez somente descreveria a cidade com suas casas e ruas, se atendo as coisas práticas de lá, descreveria algo parecido com qualquer outra cidade do interior, onde as pessoas acordam, trabalham e voltam para casa todos os dias, e conforme essa cidade se ergueria em minha imaginação, conforme as lacunas fossem sendo ocupadas pelas palavras de minha mãe, sem deixar nenhuma brecha, os restos da verdadeira Vera Cruz desapareceriam feito pó, e no seu lugar ficaria somente uma casca, uma cidade alheia que por acaso seria a cidade da minha infância.

Era tão estranho não conseguir me lembrar de nada e, ao mesmo tempo, sentir saudade. Era como se os meses em que passei em Vera Cruz fossem de uma vida passada, uma vida que vivi e ao mesmo tempo não vivi. E como uma cidade poderia desaparecer de repente, sem ninguém notar? Talvez Vera Cruz só existisse enquanto estivesse alguém olhando para ela, ou alguém pensando nela, e no instante em que isso não aconteceu ela simplesmente sumiu, com todas as casas, as pessoas, como se nunca tivesse existido. Eu queria tanto perguntar para minha mãe, queria tanto que ela me dissesse que eu estava errado, que as coisas eram dessa e dessa forma, e que cidades não desaparecem, mas não o fiz – o risco de que mais coisas desaparecessem era grande, e dessa vez seria em mim. Para não pensar mais nisso, abri meu computador com a ideia de passar o dia inteiro trabalhando, em silêncio. Era a minha forma de me afastar do passado e me ater somente ao que posso ver e tocar. No entanto, antes que eu pudesse começar, o telefone tocou.

Eu atendi. Era uma tia, irmã do meu pai, não me lembro de seu nome, confundo os 11 irmãos. Ela disse que estava ligando (ela sempre teve meu número?) para avisar que meu pai estava internado, tinha sofrido um acidente, e que eu precisava ir até o hospital assinar um termo para ele ser transferido para o leito, já que seus outros filhos não podiam ir naquela hora. Eu disse “tudo bem”, expliquei para minha mãe e fui até lá.

Chegando ao hospital, fui rapidamente atendido. Depois que assinei toda a papelada, a recepcionista me perguntou se eu gostaria de visitar meu pai. Hesitei por um instante, mas disse que sim. Enquanto transferiam ele para o quarto, esperei em um salão enorme, onde só havia eu e um segurança, completamente estático com o olhar fixo na porta. No canto do salão, havia um piano aposentado mas bem cuidado, e eu me perguntava o que um piano estava fazendo em um lugar tão silencioso, onde até meus pensamentos pareciam soar altos demais. Logo, a recepcionista se aproximou, ela andava devagar e seu salto fazia um escândalo, me entregou um crachá e explicou como chegar ao quarto. 

Quando eu entrei, meu pai tomou um susto. Não nos víamos há bastante tempo e também quase não nos falávamos por telefone. Sua cabeça estava enfaixada e ele tinha alguns arranhões no braço, mas no geral parecia bem. “O que você está fazendo aqui?”, ele perguntou. “Alguém precisava assinar um termo pra você subir pro leito”, eu expliquei. “Ah, bobeira, não precisava ter vindo”. Depois, me contou mais ou menos o que tinha acontecido, disse que não se lembrava bem por causa do tombo, aparentemente bebeu demais e caiu na calçada. Ficamos em silêncio e ele dormiu. Que merda, eu pensava, arrumando problemas mais uma vez! Eu já estava quase indo embora quando o outro filho dele chegou. Esse sim eu não via há muitos anos, desde que eu era uma criança e ele um adolescente meio rebelde, pelo menos era assim que eu me lembrava dele. Agora éramos dois adultos, dois estranhos.

– O pai está bem? – ele perguntou.

– Parece que sim, não foi nada grave.

– Certo. Podemos conversar lá fora?

Fomos para o corredor. Ele parecia agitado, cansado.

– Olha, assim que o pai sair daqui a gente vai internar ele na clínica, já tá decidido!

Não gostei da forma que ele falou, me excluindo da decisão, mas o que eu poderia dizer?

– Entendo.

– O pai não pode ficar na rua, para o bem dele. Ele não tem limites, cara! Ele mente e acredita na própria mentira. Bipolaridade é foda! Entre ele desse jeito ou deprimido, prefiro que ele fique triste mas seguro, infelizmente!

Eu não sabia que meu pai era bipolar. É claro que eu sabia que ele não estava bem, nas minhas lembranças mais nítidas ele nunca esteve bem.

– Precisamos pegar umas roupas pra ele – disse o filho do meu pai, quebrando o silêncio –. Se você quiser, eu vou e você avisa que já cheguei, caso ele acorde.

– Não, pode deixar que eu vou, você acabou de chegar.

Então, fui até a casa do pai, não era longe dali, uns 20 minutos de caminhada, no máximo. Eu só tinha ido naquela casa uma única vez, quando ele foi internado em outra ocasião. A casa era pequena e vazia, havia poucos móveis e nada que denunciasse quem vivia ali, nenhum quadro ou algo que indicasse os gostos de meu pai, enfim, eram apenas os móveis distribuídos e suas utilidades. O quarto estava uma bagunça, com a cama por fazer e um montinho de roupas sujas no chão, além das garrafas de cachaça vazias que eu ia contando em cada cômodo. Peguei um saco grande na cozinha, esvaziei as gavetas do armário e botei no saco todas as roupas que pareciam limpas. Na última gaveta não havia roupas, apenas bugigangas: um metro, fios desencapados, cola quente, calendário, amperímetro e, bem no fundo dela, uma fotografia. Ao encarar aquela foto, larguei o saco e parei tudo que estava fazendo.

A imagem não era nada reveladora, uma foto ruim de uma casa antiga e espessa, em uma rua de pedra de uma cidade do interior de Minas. Na casa, havia várias portas de madeira. Na única porta aberta, uma criança encarava a câmera. Na parte de trás da foto, estava escrito a lápis: “Vera Cruz, 2004”. Pelo menos agora Vera Cruz tinha uma imagem, mesmo aquela imagem sendo apenas um pedaço seu flutuando pelo vácuo, pedaço este que já era mais do que o suficiente para encontrar a verdadeira cidade, aquela que não estava mais no lugar, e sim entre as evidências do passado e os sentimentos do agora. A partir daquela foto, pude me lembrar que a espessa casa na verdade eram várias moradas, onde a cada duas portas vivia uma família, famílias já há muito sem rostos e sem nomes. Já da rua não me lembro de nada, muito menos do que havia por trás das montanhas, é como se o espaço geográfico da cidade começasse e terminasse nos extremos daquela foto. 

Limitado, decidi então desmembrar a imagem em mil pedaços, demolir a cidade aparente e, a partir daí, inventar uma outra cidade com o que restou. Com meus olhos bem fechados, pude ver a criança abrindo a porta e me convidando para entrar, nesse instante eu já podia me lembrar da neblina, não, lembrar não, podia senti-la em minhas mãos frias, e então me aproximei da casa a passos lentos, não havia pressa, não havia tempo, as evidências do passado já não pertenciam ao passado, e os sentimentos do agora se desgarraram do presente, havia somente o coração batendo forte, as sensações furtivas se misturando, se perdendo, se transformando em um quebra-cabeça experimental, em que algumas peças não se encaixavam, outras faltavam e a imagem que se formaria só poderia ser diferente da paisagem desenhada na caixa; a casa estava escura, mas aquela escuridão já não me assustava, a porta estava aberta e, por ela, eu podia ver o lado de fora e todo o caminho que percorri até chegar àquele momento, o momento em que eu segurava a cidade escondida na gaveta de bugigangas. Assim, uma Vera Cruz possível se formou em minha frente, repleta de rombos nas casas, nas ruas e no céu. No entanto, quando olhei novamente, a criança não estava mais lá, me esperando na porta. Tentei refazer todo o caminho, mas foi em vão. Desesperado, reinventei o próprio caminho, a cidade, o mundo inteiro, mas não a encontrei em parte alguma, ela tinha mesmo se perdido, o que restou foi seu rosto borrado naquela fotografia. Bem que parecia mesmo a última imagem de uma criança desaparecida, daquelas que vemos nas caixas de leite, nos panfletos colados em postes, nos anúncios de jornais, ou, quem sabe, em qualquer outra foto, pois em toda foto há uma presença fantasmagórica, em toda lembrança há um ruído – todas as crianças desaparecem.

Raphael Domingos

Leave Comment

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.