ALMA NO OLHO E A PARTILHA DO SENSÍVEL

Nos primeiros capítulos do livro “A partilha do sensível: estética e política”, Jacques Rancière conceitualiza o termo que dá nome à obra. A partilha do sensível é, para Ranciére, o sistema de evidências sensíveis que revela a existência de um lugar comum e os recortes que definem partes específicas. Em outras palavras, a partilha é o acordo tácito – e táctil – de distribuição sensível. Rancière também tensiona a sensibilidade, ou estética, como política. A ação política seria, portanto, reconfigurar a distribuição pré-estabelecida do sensível – aquilo que é comum a uma comunidade -, por que é isso que determina a experiência do sujeito em sociedade. 

No livro, Rancière menciona a noção de partilha do sensível pelo regime estético das obras de arte. E embora o autor se debruça mais sobre a pintura e a literatura, o cinema também pode ser pensado por essa ótica, uma vez que “a questão da ficção é, antes de tudo, uma questão de distribuição dos lugares” como o autor mesmo pontua. O universo performático da mise en scène de Zózimo Bulbul em Alma no Olho (1973) – curta onde ele exerce a função de ator, produtor, montador e roteirista – é um exemplo de um conflito que nasce da distribuição de lugares e da tentativa de fazer com que o invisível se torne visível. O filme com duração de onze minutos e cinco segundos é um gesto que propõe uma segunda ordem de visibilidade para corpos que historicamente ocuparam uma partilha implícita de modos de representação. A proposição não é, necessariamente, só um gesto inaugural e sim uma perturbação da normalidade, aquilo que a teoria estético-política rancieriana chama de dissenso. 

Em Alma no Olho (1973), Zózimo constrói visualmente o processo de diáspora. Pela reprodução de signos sensíveis diretos pela experimentação – experimental por que aborda estratégias e propósitos escurecidos de transgressão das concepções dominantes do cinema hegemônico – o corpo negro, nú e livre, gradualmente percebe o lugar opressor que ocupa: o fundo infinito branco que está em contraste constante com a pele escura. Na segunda metade, uma imagem em plongée, que na linguagem cinematográfica representa uma ideia de inferioridade da personagem em relação ao enquadramento, muda radicalmente o curso da narrativa. A personagem aparece acorrentada e as correntes são tão brancas quanto o fundo cênico. A solução alegórica para representar o processo doloroso da diáspora é trabalhada com muita inventividade e a performance de Zózimo transita pelos muitos modos de representação ao qual o corpo negro brasileiro esteve historicamente associado: o negro lavrador, jogador de futebol, sambista, ladrão e em situação de rua. Entretanto, dessa vez, subvertendo as condições limitantes de visibilidade, propondo novos olhares e uma nova partilha possível. 

Por fim, um fade out (desaparecimento gradual da imagem) induzido pela aproximação do corpo negro – que enquanto caminha quebra as suas próprias amarras – para a câmera, estabelece um ciclo narrativo. Aquilo que há dá espaço para outra coisa. Talvez, o filme esteja nos dizendo que aquele corpo está de volta ao começo da narrativa: nú e livre (aquilo que acontece lá no início do filme, um pouco depois do momento em que Zózimo dedica a sua produção à vida e obra de John Coltrane). Ou que o fundo preto ainda não é da ordem da visibilidade, é outra coisa, é aquilo que supera a si mesmo ao dialogar com o que é ancestral. Acredito verdadeiramente que essa proposição, que funda um imaginário político para as produções negras brasileiras no audiovisual, é o que enquadra Alma no Olho (1973) como um marco do cinema negro. Penso que o cinema negro contemporâneo tem uma tarefa a cumprir quando direciona os seus olhares opositivos – aqui faço referência a Bell Hooks e a sua teoria de espectatorialidade negra – para Alma no Olho: a de construir a partir de uma radicalidade propositiva, que reorganize as questões de visibilidade. Tornar visível as partilhas invisíveis da parte dos sem parte, é estabelecer outras possibilidades sensíveis para esses corpos, algo que só a arte é capaz de proporcionar. 

Por Ana Júlia Silvino

Referências:

Rancière J. A partilha do Sensível: estética e política. Tradução: Mônica Costa Netto. 2a Ed, São Paulo; Editora 34, 2009. p.72.

Oliveira, J. With the Alma no Olho: Notes on Contemporary Black Cinema. Tradução: Mark Cohen. Film Quarterly, 2020.

Hooks, Bell. O olhar opositivo: A espectadora negra. Tradução: Carol Almeida. Fora de Quadro, 2017. Disponível em: https://foradequadro.com/2017/05/26/o-olhar-opositivo-a-espectadora-negra-por-bell-hooks/

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